o Hospital São Vicente de Paulo é ilegal há 25 anos
Na Alemanha, estudantes desde o ensino fundamental visitam campos de concentração em excursões escolares. A ideia é que as novas gerações não se esqueçam do que aconteceu para que não se repita. A memória funcionaria como uma espécie de garantia contra a repetição da barbárie. Mas como já tinha observado Marx: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. E, assim, observamos nos dias de hoje uma nova ascensão da extrema direita no mundo - na Alemanha, inclusive.
A memória, então, parece não ser suficiente para evitar novos velhos genocídios - o que não a torna, de forma alguma, dispensável -, mas nos impõe a tarefa de pensar mecanismos e estratégias outras.
Esse é o momento crucial que se encontra o Grupo de Trabalho (GT) para a Desmobilização dos Leitos Psiquiátricos em Hospitais Especializados no DF.
Isto é, de forma objetiva, o fechamento do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), afinal, o fechamento de leitos psiquiátricos em um hospital psiquiátrico significa o fechamento deste hospital. Este GT, como já narrado na coluna, é organizado pela Secretaria de Saúde (SES) em resposta à demanda do Ministério Público para o cumprimento da Lei nº 975/1995, a qual, na época, fixava o prazo de 4 anos para a extinção de tais leitos e do HSVP.
Ou seja, como nunca é demais repetir, além de barbárico, o Hospital São Vicente de Paulo é ilegal há 25 anos.
O que fazer com o São Vicente para que suas práticas e lógica manicomial não mais se repitam?
Quanto aos servidores lotados no HSVP, o processo demanda realocação e treinamento para fortalecer outros serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do DF que tanto necessitam de trabalhadores.
Fundamental, contudo, que os servidores tenham voz nesse processo, não sendo deslocados para regionais e serviços aleatórios, formando assim um compromisso entre necessidade dos serviços e bem-estar do servidor.
Além disso, este processo também não diminui a necessidade de realização de concursos para a RAPS do DF como um todo, provisão de melhores condições de trabalho e a garantia de uma série de reivindicações históricas que o GDF vem negando, como: gratificação de carreiras na RAPS, adequação salarial e de carga horária.
Quanto ao espaço físico, se estivéssemos em uma situação farta de recursos (que, apesar de existirem, não são aplicados na saúde do DF), como uma RAPS e outras redes das políticas suficientes, a estrutura do HSVP poderia ser demolida, o que seria um gesto simbólico potente na superação de seu passado violento. Como essa não é a realidade, é preciso pensar em um novo uso para o espaço.
Uma premissa acordada no campo antimanicomial é que ali não tenha nenhum serviço da saúde mental.
Por mais que o DF necessite urgentemente de mais Centros de Atenção de Psicossocial (CAPSs), Unidades de Acolhimento (UAs), Residências Terapêuticas (RTs), um serviço de saúde mental instalado no mesmo local e, possivelmente, com a mesma equipe, poderia perpetuar práticas asilares, violentas e segregatórias. Por conta disso, o próprio Ministério da Saúde veda esse tipo de “reutilização”. Correríamos o risco, caso isso acontecesse, de trocar seis por meia dúzia.
Raízes manicomiais são profundas, estão nas estruturas da nossa sociedade. Por isso, resistentes, voltam a crescer com pouco. É preciso, então, que sejam cortadas completamente. No título, questionamos: Para onde vão os manicômios quando fecham? Ora, esperamos - e lutamos - que para lugar nenhum! No caso do HSVP, que ele desapareça com o seu fechamento.
As opções são diversas para uma utilização não-manicomial do espaço do HSVP e foram sugeridas pelo referido GT à SES-DF.
No caso de ser aproveitado para outro serviço da saúde, podemos pensar na implantação de Centros Especializados em Reabilitação (CER) ou outras modalidades de hospitais especializados, que não sejam os hospitais psiquiátricos (manicômios).
Há também a possibilidade de permuta com outras secretarias, como a Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) para a implantação no local de serviços da rede do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como Centros de Convivência, entre outros.
Ressaltamos a necessidade de mais CAPS, UAs, RTs e demais serviços substitutivos da RAPS no DF, mas em outros locais.
Por mais árduos que sejam, os processos de desinstitucionalização acontecem e são bem sucedidos há décadas no Brasil e no mundo. Inclusive aqui no DF temos o exemplo do fechamento da Clínica Planalto, em 2003. Então, a tarefa não só é possível, como necessária; aliás, urgente.
Necessitamos, mais do que nunca, que o GDF se responsabilize pelo fechamento do HSVP. Já basta de violência e ilegalidade.
Com a finalização dos trabalhos do GT, que possibilitou uma construção técnico-política a subsidiar tal fechamento, chegamos agora em outro estágio de luta, de tensionamentos e construções: a implantação do que foi deliberado coletivamente pelo GT.
Nesse novo estágio político-institucional, cabe à militância no campo da saúde mental, bem como à toda a sociedade do DF, se mobilizar para garantir que o produto final do GT, o plano de trabalho do fechamento do HSVP, seja cumprido à risca e em prazo razoável. Afinal, trata-se da vida de pessoas que ali foram e são violentadas - e continuarão a ser enquanto o HSVP estiver em pé.
Franca Basaglia, não somente uma esposa, mas ela própria uma militante incontornável da Reforma Psiquiátrica italiana, fala de uma Reforma abortada, incompleta na Itália. Entre os motivos: o político. Por aqui, estamos mais perto do que nunca de um momento histórico construído por anos de luta de usuários do SUS, trabalhadores, gestores, residentes e demais militantes da saúde mental. Mas a vitória ainda não está garantida.
Para que a Reforma do DF seja retomada, ao invés de abortada, esperamos que o governo Ibaneis-Celina cumpra as orientações técnicas do GT, do Ministério Público, e, especificamente, a lei. Quanto a nós, já estamos aqui cobrando e cobraremos ainda mais!
Mais do que nunca, pelo fechamento do Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo!
Pelo fim de todos os manicômios!
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*Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (SMM-DF) é um grupo vinculado ao Instituto de Psicologia da UnB, que visa potencializar a militância no campo da saúde mental.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Márcia Silva