No início deste mês de setembro, os jornalistas concursados da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) iniciaram um movimento grevista, realizando uma histórica paralisação de 48 horas (nos dia 3 e 4), com adesão de 95% da categoria.
No centro das reivindicações, a exigência de que a empresa respeite a jornada específica da categoria profissional que é fundamental para a democracia e para o combate à pandemia da desinformação que afeta a sociedade brasileira. Não se trata meramente de uma questão trabalhista, que por si só já não seria trivial.
Na era da (des)informação, são os jornalistas os profissionais capazes de buscar, confirmar, sistematizar e oferecer à sociedade um conjunto de informações íntegras que sirvam de contraponto ao vale tudo das redes sociais.
Controlada pelos algoritmos sem compromisso com os fatos, mas com os lucros e interesses geopolíticos dos países que sediam as big techs – as plataformas digitais permitem e impulsionam, em velocidade e volume até poucos anos impensáveis, conteúdos que agridem a democracia, a soberania nacional, os direitos humanos e alimentam a extrema direita em todo o mundo.
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Nesse contexto, é fundamental que o Brasil e o governo Luiz Inácio Lula da Silva, que preza pela democracia, valorizem a categoria profissional que tem a informação (e seu tratamento responsável) como insumo básico do seu trabalho, ainda mais se tratando de profissionais da mídia pública, que cumpre uma missão constitucional estratégica.
A comunicação e o jornalismo públicos, ao lado da mídia popular e alternativa, são os segmentos da imprensa responsáveis por complementar a cobertura da mídia empresarial corporativa que, muitas vezes, devido aos seus interesses políticos e comercias, omite ou reduz as informações oferecidas sobre determinados temas caros aos seus proprietários, a exemplo das coberturas sobre as contrarreformas trabalhista e da previdência e, mais recentemente, sobre as exorbitantes taxas de juros praticadas no país.
Pelo seu porte e potencial, a EBC é o instrumento de Estado (e não de governos de turno) e do povo brasileiro que pode influenciar decisivamente no debate público hoje dominado por grupos privados e pelos algoritmos das redes digitais, estes também revelando interesses corporativos.
A TV Brasil e suas parceiras, que compõem a Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP), alcançam até 48 milhões de telespectadores. A TV Brasil é a 6ª emissora mais assistida do Brasil. Além disso, as rádios da EBC alcançam ainda 295 mil ouvintes, chegando em regiões onde nenhuma outra emissora alcança, como áreas ribeirinhas, rurais e fronteiriças.
Além da TV Brasil, a EBC possui a Agência Brasil, a Radioagência Nacional, e as rádios MEC, Nacional, Nacional da Amazônia e a do Alto Solimões. Ainda presta serviços ao governo por meio dos canais governamentais. Com conteúdo gratuito, os veículos da EBC alimentam centenas de jornais e milhares de emissoras locais e comunitárias, e são largamente reproduzidos pela mídia empresarial.
É gigantesco potencial midiático desperdiçado por falta de pessoal, investimentos e ausência de política de comunicação estratégica.
Infelizmente, o desmonte iniciado no governo Temer - que já reduziu em mais de 25% a força do trabalho da companhia - e a ausência de concurso público, na atual gestão, têm limitado qualquer processo de reconstrução da empresa.
Rebaixamento ilegal
Nesse contexto, a direção da EBC desvaloriza os jornalistas por meio da proposta de Plano de Cargos e Remunerações (PCR) que rebaixa a tabela salarial da categoria em 12% na comparação com outros cargos de nível superior da empresa, desfazendo a isonomia atualmente existente.
Concebida de forma discriminatória, a nova tabela salarial se baseia na mentalidade de salário-hora, inexistente em outras empresas públicas e privadas, como forma de burlar a legislação que define a jornada específica de jornalistas, prevista na Seção XI da CLT desde 1943.
A paralisação foi uma resposta à intransigência da direção da EBC, que não quis sequer discutir cenários alternativos para a proposta, tornada pública há apenas dois meses.
A jornada de trabalho dos jornalistas – prevista na CLT desde 1943 – é fixada em 5 horas diárias e até seis dias por semana, com possibilidade de aumentar para 7 horas diárias por meio de um aditivo contratual.
A Lei fixou essa jornada não para que os jornalistas recebam menos que as demais categorias, mas porque as particularidades da profissão justificam a diferença. Jornalistas fazem plantões sábados, domingos e feriados, podem ser convocados para situações extraordinárias, trabalham sob o sol ou chuva sempre que necessário.
Qual repórter que nunca permaneceu horas em uma "portaria" de ministério aguardando uma autoridade para levar informação ao público?
Ou que se arriscou em meio à tragédia de uma enchente para mostrar o impacto aos espectadores?
São profissionais suscetíveis a trabalhar em situações diversas de risco, incluindo zonas de conflito e de desastres ambientais e climáticos.
A limitação de duas horas extras adicionais, que valem 50% a mais (70% no setor privado), segundo a legislação, constitui parte dessa jornada diferenciada que buscou evitar que um jornalista pudesse recorrentemente passar 10 horas diárias, jornada completamente desgastante, e que, mesmo assim, somos instados a fazer com frequência, por força da natureza do ofício, que nos envolve com a documentação da história contemporânea.
Assim como professores, médicos e enfermeiros, que também têm direitos de jornada diferenciada, para citar alguns exemplos, os jornalistas da EBC pedem que a direção da empresa e, em última instância, a Secretária de Comunicação Social da Presidência (Secom), respeitem a jornada da categoria e façam um PCR com salários isonômicos entre todas as categorias.
Repercussão geral
Com efeito, o desrespeito à jornada de trabalho dos jornalistas na EBC afeta não apenas os profissionais da empresa, mas toda a categoria. Tanto é assim que a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) já se manifestaram contra a proposta por entenderem que potencialmente abrange o conjunto dos jornalistas profissionais no Brasil. Afinal, a medida abre margem para as empresas privadas seguirem pelo mesmo caminho do salário-hora, o que seria um grave retrocesso, uma precarização sem precedentes.
Já é comum que vagas oferecidas no setor público e privado, para atividades típicas de jornalistas (definidas em lei), descumpram a jornada específica, o que sempre mobiliza a atuação sindical de proteção profissional. Não podemos permitir o agravamento disso por uma empresa que é uma das referências no mercado de trabalho para jornalistas.
Esperamos que o governo e a EBC corrijam essa injustiça e promovam um novo Plano de Carreiras que valorize o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras da mídia pública. Afinal, é por meio do suor e da dedicação da classe trabalhadora que efetivamente se constrói esse alicerce da democracia, que é o jornalismo profissional.
*Lucas Pordeus León é jornalista, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB) e repórter da Agência Brasil (EBC) na cobertura de Congresso Nacional, meio ambiente, assuntos internacionais e direitos humanos. Atualmente, é diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF).
**Pedro Rafael Vilela é jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB) e repórter da Agência Brasil, com experiência na cobertura de política, economia e direitos humanos. Atualmente, é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF).
***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino