Atriz ocupa palco com personagens de diversos tempos históricos que têm como elo o tema da educação
Por mais de uma hora, a atriz Julie Wetzel, dirigida por Patrícia Barros e Lyvian Sena, todas integrantes da Cia Burlesca, ocupa o palco representando personagens de diversos tempos históricos que têm como elo o tema da educação, mais especificamente da educação de jovens e adultos e da erradicação do analfabetismo, em dois países latino-americanos, Brasil e Cuba.
:: A Aurora: peça sobre educação como prática transformadora estreia neste sábado (7) no DF ::
A primeira cena se passa no Brasil: a atriz manuseia os classificados de jornal, aquilo que até tempo recente era um caderno cheio de páginas, de anúncios de compra e venda de todo tipo de mercadoria, de serviço, oferta de emprego... O tempo passou, o fluxo de anúncios foi para as redes sociais, para a internet, jornais e revistas impressas hoje são a parte residual do mercado de notícias. A tecnologia avançou, mas com ela não nos livramos da chaga do analfabetismo: os espectadores são informados que ainda temos nove milhões de brasileiros fora do ensino médio. Para termos um parâmetro de referência estamos falando de três vezes a população de nosso vizinho Uruguai, com escolarização incompleta.
Na segunda cena, somos remetidos para 1961: terceiro ano da Revolução Cubana, iniciada em 01 de janeiro de 1959. É o ano da Educação, momento em que o governo decide convocar a juventude, educadores, as universidades, para erradicar o analfabetismo. O Estado organizou e formou brigadas de alfabetização. A cidade paradisíaca de Varadero, com seus hotéis e toda estrutura de turismo, foi mobilizada para acolher as brigadas em formação e garantir a logística do grande exército de alfabetizadores.
O fluxo de informações é narrado pela atriz e interpretado pela personagem de uma brigadista. Julie Wetzel consegue, com os adereços e figurino que mobiliza em cena, pela forma como narra e se relaciona com os objetos, com o público e com as memórias, inspiradas no livro “A Revolução de Anita”, de Shirley Langer, envolver e comover os espectadores com o clima de uma campanha nacional convocada por um governo revolucionário para por fim a uma das marcas do subdesenvolvimento das ex-colônias, o analfabetismo.
Na terceira cena, voltamos ao Brasil de 1964, momento em que a educação popular e a luta para alfabetizar e organizar a classe trabalhadora era encampada por movimentos como o Movimento de Cultura Popular (MCP), que tinha como um dos educadores Paulo Freire que, posteriormente, sistematiza a proposta com o nome que se tornou famoso de “Pedagogia do Oprimido”.
Os ventos da Revolução Cubana chegaram em outros países como inspiração da possibilidade de insurgência contra o imperialismo, e o Brasil não ficou de fora: o chão histórico do contexto pré-golpe foi marcado pelo aumento exponencial de movimentos populares e sindicais organizados, pelo aumento das greves, pela construção da plataforma programática das reformas de base, em que as reformas agrárias e universitária eram duas das principais promessas de transformação. Em 21 de janeiro de 1964, o presidente João Goulart assinou o decreto do Programa Nacional de Alfabetização (n.º 53.465) que institui o sistema Paulo Freire para alfabetizar a população brasileira, e apresenta na parte inicial três considerações que cabe destacar:
“CONSIDERANDO a necessidade de um esforço nacional concentrado para eliminação do analfabetismo;
CONSIDERANDO que os esforços até agora realizados não têm correspondido à necessidade de alfabetização em massa da população nacional;
CONSIDERANDO que urge conclamar e unir tôdas as classes do povo brasileiro no sentido de levar o alfabeto àquelas camadas mais desfavorecidas que ainda o desconhecem;"
Todavia, se em Cuba a experiência foi bem sucedida, aqui o caminho foi bloqueado por uma ditadura que durou vinte e um anos, iniciada em 1964. Um dos personagens interpretados pela atriz é o de um interrogador que questiona de forma autoritária o educador Paulo Freire sobre seu trabalho.
A Burlesca apresenta, neste espetáculo, um ponto de maturidade no manejo da carpintaria e de interpretação do teatro épico, com mais um resultado expressivo na trajetória de seu consistente repertório. O tempo presente e suas contradições é ponto de partida para um mergulho na história em que somos remetidos a diversos fragmentos de experiências de décadas passadas e a situações cujos impasses nos parecem semelhantes aos de nosso tempo, em que a extrema-direita, no Brasil e no mundo, ameaça democracias por dentro e/ou com golpes, impondo censuras a livros e retirada de circulação de materiais didáticos.
As personagens que a atriz Julie Wetzel nos apresenta nos comovem ou nos geram sentimento de repúdio, em todos os casos são familiares, verossímeis, possíveis, se não existentes. Entretanto, não é possível perseguir a história como uma narrativa linear, porque as cenas não encadeiam uma sucessão de presentes. O que acontece em cena são fragmentos de processos históricos encenados. A competência do trabalho de pesquisa que precede a fase de laboratório é outro aspecto que cabe destacar como marca da companhia: com “Bendita Dica” apresentaram uma personagem de Lagolândia (GO) que comandou lutas pela terra na região; no penúltimo espetáculo “A legítima história verdadeira” o grupo viajou para o Rio Grande do Sul e para a Paraíba para pesquisar as histórias das mártires da luta pela terra Roseli Nunes e Margarida Alves e, com elas, colocou em cena a forma do trabalho de base, de como as organizações juntam e organizam o povo, com mística, festa e alegria, a despeito da violência repressiva. E, agora, a pesquisa histórica extrapolou as fronteiras nacionais e nos apresenta a maneira como Cuba revolucionária erradicou o analfabetismo, no mesmo período em que fez a reforma agrária.
Assisti ao espetáculo com professores e estudantes da Licenciatura em Educação do Campo e quase uma centena de professores das escolas do campo do DF, reunidos no campus de Planaltina da Universidade de Brasília, no dia 14 de setembro, para uma etapa do curso de formação de professores da Educação Básica do DF “Programa Escola da Terra”. Entre o encanto do que foi narrado e interpretado pela “camarada Wetzel” e o incômodo decorrente do fato de sabermos o que já foi feito, o que foi impedido, e o que poderia ter sido feito desde a redemocratização... mas não foi... a peça Aurora convida à reflexão e ação.
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*Rafael Villas Bôas é professor da Licenciatura em Educação do Campo da UnB e jornalista.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Rafaela Ferreira