Distrito Federal

Combate à Tortura

Financiamento distrital e federal de instituições manicomiais é debatido na CLDF

Reunião pública também apresenta relatório de inspeção elaborado pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Reunião Pública da Comissão de Educação, Saúde e Cultura apresenta Relatório de Inspeções do MNPCT - Foto: Rinaldo Morelli/Agência CLDF

O financiamento federal, estadual e distrital de instituições com caraterísticas manicomiais foi um dos pontos abordados durante reunião pública, na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), nesta segunda-feira (7). Na ocasião, foi apresentado o relatório de inspeções do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que expõe ocorrências de violações de direitos humanos na Comunidade Terapêutica Salve a Si - Instituto Eu Sou, na Cidade Ocidental (GO), e no Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, em Taguatinga, região administrativa do DF.

O São Vicente é um hospital de competência da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Já as comunidades terapêuticas são instituições de natureza privada, na maioria religiosas, que se estruturam como residências coletivas temporárias para recuperação de pessoas que fazem uso de álcool e drogas. Um requisito para elas receberem financiamento do governo federal é a elaboração de um projeto terapêutico.

Segundo estudo efetuado pela Conectas Direitos Humanos e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entre 2017 e 2020, o investimento federal nessas comunidades totalizou R$ 300 milhões. O montante sobe para R$ 560 milhões quando considerados os valores repassados por governos estaduais e prefeituras de capitais.

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O professor Pedro Costa, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Grupo Saúde Mental e Militância no DF, que esteve presente na reunião, destaca que quanto mais se investe nas CTs, mais a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é sucateada.

"Parte das verbas que deveriam estar sendo destinadas a CAPs e CAPS-Álcool e Droga estão sendo orientadas para as comunidades terapêuticas. É um custo financeiro e político, porque ao passo que se destina verba para eles, se deslegitima as RAPS. É um custo ético”, destaca.

O relatório do MNCPT também aponta que nas CTs há apropriação de bens dos internos, incluindo recursos do Bolsa Família. Para o deputado distrital Gabriel Magno (PT), presidente Comissão de Educação, Saúde e Cultura (CESC) da Casa, o fato que as comunidades terapêuticas reterem o Bolsa Família, que é uma política de assistência do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) é inacreditável.

“Isso por si só deveria descredenciar essas comunidades. É inacreditável que se financie instituições como essas no DF", destaca.

Condições sub-humanas e trabalho análogo à escravidão

Durante a reunião, também foi destacado a importância da desativação definitiva do Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo e da comunidade terapêutica Salve a Si.

O relatório detalha o cenário preocupante das instituições inspecionadas. Entre as mais graves violações identificadas pelo Mecanismo, estão denúncias de maus-tratos, exploração do trabalho, tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Também foi constatada a falta de treinamento especializado para os profissionais que atuam nas unidades.

As inspeções também revelaram severas restrições à liberdade dos internos, incluindo a utilização de trancas e cadeados, e o controle rígido da comunicação com o mundo externo. Há registros de exploração econômica dos internos, com cobranças de contribuições mensais e apropriação indevida de bens e recursos pessoais.

A presidenta do Conselho Regional de Psicologia do DF (CRP-DF), Thessa Guimarães, destaca que as instituições revelam locais onde os mais diferentes tipos de “barbaridades” são cometidos.

“Nós estamos falando de um sub-Brasil de baixo dos nossos pés. Ele é presente, concreto e real. Existe uma rede nacional infralegal de clínica de saúdes clandestinas. Existe uma rede onde todo tipo de barbaridade são cometidas e práticas de saúde são praticadas sem que a Saúde possa entrar para fiscalizar. São órgãos de custódia infralegais".

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O Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo opera ilegalmente há quase 30 anos, utilizando práticas manicomiais baseadas na medicalização e no uso de contenções mecânicas como método disciplinar. Presente na ocasião, Carolina Lemos, perita do MNCPT, destacou que “enquanto o hospital [São Vicente] estiver aberto, os serviços de saúde mental continuam funcionando em uma lógica manicomial e com a centralidade de um hospital psiquiátrico", explicou.

O documento também denuncia o uso de contenção mecânica, isto é, a imobilização através da força física, e relata abusos físicos e verbais cometidos por funcionários do Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo.


Frente do Hospital São Vicente de Paulo, localizado em Taguatinga, região administrativa do DF / Foto: Brasil de Fato DF

Para a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF,) o documento solicita que se cumpra os termos da Lei no 975, de 12 de dezembro de 1995, que determinou a extinção dos leitos psiquiátricos em hospitais e clínicas especializadas no Distrito Federal. Além disso, também pede que implemente medidas para a desativação definitiva do Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo.

Também presente na reunião, a diretora de Serviços de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do DF (Dissam), Fernanda Meneses, conta que o relatório foi recebido pela diretoria. “Da nossa parte, apresentamos a desativação dos leitos do hospital em detrimento do movimento. Temos um grupo de trabalho ativo para desmobilizar os leitos”. Ela ainda destaca que ainda precisa ser planejado o que fazer com o São Vicente, uma vez que “um hospital sem leito, não é um hospital”.

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Comunidade terapêutica

Rogério Guedes, também perito do MNCPT, explica que a comunidade terapêutica Salve a Si ainda utiliza da laborterapia nas atividades diárias, ou seja, técnica que visa o restabelecimento de pacientes por meio do trabalho. Porém, ele aponta que, durante inspeções, foi identificado que os acolhidos trabalham horas excessivas e em locais inadequados.


Rogério Guedes, perito do MNCPT, falou sobre a situação das comunidades terapêuticas / Foto: Rinaldo Morelli/Agência CLDF

O documento descreve que os horários de trabalho também variam conforme a tarefa realizada. “Para aqueles que trabalham na cozinha, informação confirmada pelo vice-presidente da ONG em entrevista, a rotina começa às 5h e só termina depois das 19h. Ou seja, um dia de trabalho na cozinha equivale a uma jornada de cerca de 14 horas de trabalho, acima inclusive do limite legal das Leis de Consolidação do Trabalho. Da mesma forma, aqueles que fazem trabalhos ligados à ordenha e criação de animais iniciam sua jornada de madrugada”, mostra o relatório.

Guedes comentou que muitos acolhidos se sentem obrigados a ficar e trabalhar nestes locais uma vez que recebem “cama” e “comida”. “O acolhido mantém o local, já que essa instituição não tem funcionário. Então, a comunidade funciona por uma ‘troca’, uma vez que os indivíduos realizam as tarefas. Porém, está na lei que isso é exploração do trabalho e trabalho análogo a escravidão. O recurso público está destinando recurso público para uma nova forma de escravidão de uma forma maquiada”, relata.

Recomendações

O documento aponta uma série de recomendações para melhorar as condições e garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade. O relatório do MNPCT recomenda que seja realizada uma revisão na política de financiamento das comunidades terapêuticas, priorizando políticas públicas que promovam a reintegração familiar e comunitária e o cuidado em liberdade.

O Mecanismo também pede a implementação de protocolos rigorosos para a fiscalização das comunidades terapêuticas que recebem financiamento público, garantindo que as inspeções sejam conduzidas por um corpo técnico independente. Recomendou-se ainda a desativação definitiva dos hospitais psiquiátricos, conforme previsto na legislação brasileira, substituindo-os por serviços comunitários de saúde mental que respeitem os direitos e a dignidade dos pacientes.

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Edição: Flávia Quirino