Vamos falar de clima, porque o primeiro turno das eleições municipais passou, mas o calor, infelizmente, não. Nesta segunda, voltou a chover em Brasília após 167 dias, a maior seca já registrada na região desde 1963. No último sábado os termômetros chegaram a 37,5 graus, maior temperatura do ano.
O problema não se restringe ao Distrito Federal. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) cravou que mês passado foi o setembro mais quente registrado no país, em uma série que começou há 63 anos, em 1961. A temperatura média chegou a 25,9 °C, ou 1,7 °C acima da média de 24,2 °C para o mês. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), esta é a “maior seca da história” do país.
A força da seca desafia nosso senso comum e atinge até a Floresta Amazônica. Praticamente todos os grandes rios daquela bacia estão abaixo, ou muito abaixo, do normal, em uma seca que começou no ano passado e neste ano se tornou mais intensa e duradoura. Rios que regem a circulação, a cultura e a vida em seu entorno, como o Madeira, viraram desertos de areia em vários pontos, secando praticamente por completo. Comunidades ficaram isoladas e sem água potável. A previsão de chuvas na região é somente a partir de novembro.
:: Seca no Norte, temporais no Sul: efeitos das mudanças climáticas seguem castigando o Brasil ::
Enquanto isso, como resposta ao combate ao desmatamento do governo Lula, inimigos da floresta têm usado o fogo como ferramenta para avançar e consolidar a apropriação de terras públicas, cobrindo de fumaça boa parte do país. E há ainda a suspeita de uso político do fogo por setores contrários ao governo.
Seria esse momento desagradável um ponto fora da curva? Talvez não.
O ano passado foi considerado o mais quente “da história” do planeta Terra (ou ao menos dos últimos 100 mil anos), 1,48 ºC mais quente que a média do período pré-industrial e pertíssimo dos 1,5ºC considerado minimamente seguro pelo Acordo de Paris. Em 2023, houve um El Niño, fenômeno que esquenta as águas do pacífico, bastante forte. Mas isso parece explicar cada vez menos já que, neste ano, o fenômeno perdeu força mas a temperatura não baixou. Se permanecer nesse patamar, podemos esperar um aumento exponencial no número de catástrofes ao redor do mundo ao longo dos próximos anos.
Este é quadro que deixou perplexo o climatologista brasileiro Carlos Nobre, uma das maiores referências no tema: “Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido”, desabafou em entrevista ao Estadão. É o que todos deveríamos sentir. Mas, também como ele, não podemos cair numa paralisia derrotista. A velocidade assustadora das mudanças nas quais estamos imersos não deixa outra opção a não ser reagir e lutar. Em especial ao sabermos que o Brasil, por estar em uma região tropical, é um dos países mais vulneráveis à mudança do clima, como lembrou outro cientista, Paulo Artaxo, aos chefes dos três poderes em Brasília.
Mas o que fazer então?
Quando analisamos a realidade, fica clara a necessidade de questionar nosso modelo econômico. Sendo mais direta, não é possível agir na questão climática isso sem enfrentar interesses das frações mais poderosas da nossa classe dominante: a burguesia agrária, também chamada de agronegócio, e a financeira (sabendo que elas se interseccionam em vários pontos).
Essas frações se consolidaram hegemônicas com as reformas neoliberais dos anos 90 e o processo de desindustrialização do país e cada vez mais dominam as instituições impõem sua ideologia no país, forjando um consenso neoliberal que espreme as margens de ação do governo eleito para fazer diferente, o de Lula.
O presidente, por falar nisso, emana sinais contraditórios para quem quer se firmar como referência ambiental ao receber a COP 30 no ano que vem na Amazônia. Um deles é a normalidade com a qual pretende explorar petróleo até a última gota, a pretexto de financiar um plano de transição energética que permanece vago.
A visão de desenvolvimento para a Amazônia também segue sintonizada no século passado. As excelentes políticas de redução do desmatamento convivem com o anúncio de obras que apontam no sentido contrário, como o asfaltamento da BR 319 (Manaus-Porto Velho), a Ferrogrão e a hidrovia Araguaia-Tocantins, que ajudam a dar um empurrãozinho na fronteira da agropecuária, acentuando os conflitos socioambientais que marcam a geografia e a história da região.
O agronegócio, autoproclamado motor da economia, está direta ou indiretamente relacionado à maior parte das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, uma vez que cerca de metade vem do desmatamento e outros 25% da agropecuária.
Burguesia agrária
Muitos idealistas ainda tentam procurar o trigo em meio ao joio, ou separar o “agro” do “ogro”, mas a verdade é que não se pode contar com um grupo minimamente capaz de vocalizar oposição à faceta predatória do setor.
Operando por meio de sua poderosa bancada congressual, mas também dentro do governo federal e nas outras esferas de poder, a burguesia agrária tem atuado para desmontar o licenciamento ambiental, impedir a demarcação de terras indígenas (reconhecidas como freio ao desmatamento), ampliar o uso de veneno e diminuir áreas de reserva legal e área de proteção permanente.
É verdade que se trata de um setor altamente vulnerável às mudanças climáticas. Mas, apesar da conveniente pose de vítima, a burguesia agrária sabe que sempre contará com recursos públicos para recompor sua margem de lucro diante das perdas ocasionadas pelos desastres como as enchentes ou a seca. Basta lembrar que a cada ano o setor abocanha mais bilhões com o Plano Safra, com raquíticas contrapartidas socioambientais, enquanto a agricultura familiar, bem mais saudável para o meio-ambiente e a sociedade, recebe uma fatia bem menor desse bolo e é quem verdadeiramente arca com os prejuízos climáticos.
:: Marina Silva defende constrangimento ético contra mudanças climáticas ::
Outro obstáculo não menos importante é o capital financeiro, avesso a qualquer sombra de planejamento que freie no curto prazo os lucros da especulação. Este setor age para privatizar e desmontar qualquer traço de atuação social do Estado, sob o receituário antiquado e politicamente perigoso da austeridade.
Seus representantes esperneiam nos jornais diante das medidas mais singelas e emergenciais, como deixar fora do arcabouço fiscal os gastos do combate aos incêndios ou a reconstrução do Rio Grande do Sul. Seu domínio sobre os governos impede que se gaste devidamente com prevenção e adaptação. Que seja mais caro (em dinheiro, mas também em vidas humanas) ter que reconstruir depois do desastre do que prevenir, não importa. Até porque também surgem aí novas oportunidades de lucro, como têm apontado os teóricos do “capitalismo de desastre”.
Agenda contra os interesses do povo
O que vemos, portanto, no tema do clima é uma classe empunhando uma agenda contra os interesses do povo e do país. Fica claro que a emergência climática não atinge a todos da mesma forma. São as frações mais pobres, pretas e periféricas da classe que vive do trabalho que mais sofrem, enquanto os mais ricos são mais responsáveis pelo problema. Pois ao contrário do que certas narrativas apregoam, não é o ser humano universal e genérico o culpado pelo colapso ambiental, mas uma forma bem específica e recente de organização social chamada capitalismo. Por isso, é preciso crer que outra forma de organizar a sociedade é possível e urgente.
É preciso abandonar a ilusão de que as classes dominantes vão pôr a mão na consciência e abrir mão de seus ganhos imediatos em nome do bem comum. Não vão. Nunca fizeram. Mas como agem os setores populares diante da emergência?
Em meio à fumaça e à seca, a questão climática deveria ser central nessas eleições, mas as campanhas em geral mal tangenciaram o tema. Os resultados deste domingo mostram um crescimento da direita e extrema-direita, o que desenha um quadro desafiador para esses anos tão decisivos para fazer algo - inclusive 2026. Um retorno da extrema-direita ao governo do país, seja sua fração mais bruta ou mais palatável, pode nos empurrar para um abismo ambiental profundo.
Em que pesem as diferenças e a fragmentação de nosso campo, somente um projeto comprometido com a distribuição da riqueza, a democratização do poder e a vida dos debaixo é que pode abrigar soluções para o clima e o meio ambiente frente à doutrina do lucro acima de tudo.
Por isso, é preciso agarrar o tema do clima pela esquerda e colocá-lo no coração de um projeto popular para o país. É óbvio dizer, mas vamos precisar de muita organização, pressão e disputa de ideias na sociedade. A luta de classes segue viva. É tempo de avançar.
*Elisa Estronioli, jornalista, doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Pará (UFPA) e integrante da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::
Edição: Márcia Silva