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A urgência de avançar na legislação brasileira sobre sementes nativas

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"A ausência de uma regulamentação nítida no Brasil pode resultar em sobre-exploração, ameaçando populações de plantas, especialmente aquelas que já estão em risco". - Foto: Luana Santa Brígida/ISA
Incentivo a essa abordagem poderia facilitar a recuperação de áreas com vegetação campestre

O Brasil se comprometeu a restaurar 12 milhões de hectares de áreas degradadas até 2030, como parte de um esforço global para enfrentar a crise climática e conservar a biodiversidade.

Esse compromisso vem sendo revalidado com a revisão do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), atualmente em fase de finalização. No entanto, como alcançar essa meta diante dos inúmeros obstáculos que dificultam o cumprimento dessa missão?

Curiosamente, um dos principais desafios está na legislação relacionada à produção de sementes nativas no Brasil. Esse é o ponto central do artigo acadêmico "How can Brazilian legislation on native seeds advance based on good practices of restoration in other countries?", recentemente publicado na revista Perspectives in Ecology and Conservation. Assunto esse que já foi levantado pelo Redário de Redes de Sementes na Nota Técnica “Desafios e oportunidades para o desenvolvimento da cadeia produtiva de sementes nativas para a restauração de ecossistemas no Brasil” e também por outros pesquisadores que já vêm abordando o tema em diversos artigos científicos.

O recente estudo sugere que a legislação brasileira sobre sementes nativas apresenta lacunas significativas, que poderiam ser ajustadas com base em práticas bem-sucedidas de outros países. Ao comparar a legislação brasileira com a de nações como Argentina, Chile, Uruguai e Estados Unidos, o artigo revela como esses países têm abordado a coleta e regulamentação de sementes, garantindo, ao mesmo tempo, a qualidade das sementes nativas. 

Um dos pontos críticos destacados é a falta de regulação da coleta de sementes em ambientes nativos. A ausência de uma regulamentação nítida no Brasil pode resultar em sobre-exploração, ameaçando populações de plantas, especialmente aquelas que já estão em risco. O artigo enfatiza que, em países como a Alemanha e outros da União Europeia, a coleta de sementes é regulamentada para garantir a sustentabilidade e conservar a biodiversidade.

Orientar boas práticas no Brasil seria crucial para evitar danos à flora nativa.

Além disso, há a dificuldade de credenciamento de laboratórios de análise de qualidade de sementes. Embora o Brasil tenha mais de 180 laboratórios credenciados, menos de 10% trabalham com espécies nativas e florestais, e a diversidade de espécies atendidas é limitada, não suprindo as demandas do mercado. Esse gargalo prejudica o desenvolvimento do setor, já que, sem análises adequadas, há o risco de uso de sementes de baixa qualidade em projetos de restauração. Partindo desta perspectiva, o artigo sugere a inovação em mecanismos de participação social para a certificação de qualidade de sementes, como é feito na certificação de produtos orgânicos. 

Outro ponto relevante abordado pelo estudo é a norma restritiva quanto ao uso de misturas de sementes nativas. A legislação brasileira dificulta a comercialização de misturas colhidas diretamente de áreas naturais, uma prática comum em outros países. O artigo sugere que flexibilizar essa norma poderia promover a restauração de ecossistemas essenciais, como campos e savanas, que são fundamentais para a biodiversidade do Cerrado e Pampa, além de de outras regiões. O incentivo a essa abordagem no Brasil poderia facilitar a recuperação de áreas com vegetação campestre e acelerar o processo de restauração ecológica com maior diversidade de espécies.

A falta de regulamentação de Zonas de Transferência de Sementes (ZTS) também é um desafio no Brasil. As ZTS são fundamentais para garantir que as sementes utilizadas em projetos de restauração sejam adaptadas às condições locais. No entanto, o Brasil ainda carece de uma regulamentação específica para essas zonas. O artigo aponta que, em países como Estados Unidos e alguns da Europa, as ZTS já estão estabelecidas e contribuem para o sucesso a longo prazo dos projetos de restauração, garantindo que os plantios sejam mais resilientes frente às mudanças climáticas.

Uma das principais críticas levantadas é que a legislação brasileira é fortemente baseada em padrões voltados para espécies agrícolas, negligenciando a diversidade de espécies nativas e suas particularidades, que são essenciais para a restauração ecológica. Essa abordagem, focada na produção agrícola, tem imposto barreiras significativas ao aumento da produção de sementes nativas no Brasil. É necessário se pensar em normativa para  produção de sementes e mudas nativas voltadas exclusivamente à restauração, pois são antagônicas aos padrões requeridos para a silvicultura, por exemplo. 

É importante destacar, que mesmo diante de todas essas barreiras, o Brasil, por sua vez, tem acumulado boas práticas na cadeia produtiva de sementes nativas, especialmente por meio da atuação de redes e grupos de coletores, muitas vezes em parceria com universidades. O papel importantíssimo dessas redes foi, inclusive, destaque do nosso primeiro artigo publicado nesta coluna.

:: Cerrado: Semeando resiliência e esperança em tempos de destruição ::

O governo, provocado por diversos atores envolvidos na cadeia da restauração, tem articulado um movimento interministerial que visa discutir e rever normativas referentes à produção de sementes nativas no Brasil.

Para garantir uma participação efetiva da sociedade civil envolvida nos processos, é destacado tanto no artigo "How can Brazilian legislation on native seeds advance based on good practices of restoration in other countries?" quanto na Nota Técnica do Redário, a importância da reativação da Comissão Técnica de Sementes e Mudas de Espécies Florestais Nativas e Exóticas como espaço colaborativo que poderá garantir um setor mais robusto, inclusivo e alinhado às metas de recuperação ambiental no Brasil.

Especialmente nesse momento em que estamos em plena Década da Restauração da ONU e sofrendo de inúmeras formas com as mudanças do clima, o estudo nos faz refletir sobre a necessidade de repensar a legislação atual para que o país cumpra a meta de restaurar 12 milhões de hectares até 2030. Incorporar práticas adequadas que priorizem a diversidade e a adaptação local das espécies nativas pode ser a chave para superar os gargalos existentes e viabilizar a restauração em larga escala no país.

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*Anabele Gomes é bióloga, mestre e doutora em botânica, servidora do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília e Presidente da Rede de Sementes do Cerrado. 

**Rodrigo Dutra é zootecnista, mestre em ecologia, especialista em recuperação de áreas degradadas e Analista Ambiental do IBAMA. Atualmente, é  chefe da Divisão Técnico-Ambiental do IBAMA/RS.

***Maria Antônia Perdigão é jornalista, mestre em Comunicação Social e consultora em comunicação socioambiental. Atualmente, é coordenadora de comunicação da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).

Referência: Dutra-Silva R., Overbeck G.E., Müller S.C. How can Brazilian legislation on native seeds advance based on good practices of restoration in other countries? Perspectives in Ecology and Conservation, Volume 22, Issue 3, 2024, Pages 224-231, ISSN 2530-0644, https://doi.org/10.1016/j.pecon.2024.08.002.

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Márcia Silva