Enquanto o preço da luz pesa na conta dos mais pobres, tudo vai muito bem, obrigado
O preço da luz é um pesadelo para as famílias brasileiras e um desafio para o governo Lula. Na primeira quinzena de outubro, a tarifa foi a vilã da alta na prévia de inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (15 PCA-15). Houve um aumento de 5,29% no preço da energia elétrica residencial sob a bandeira vermelha patamar 2. Cada 100 KWh consumido teve um aumento de quase R$ 7,90.
A justificativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para o aumento foi a seca extrema que penalizou grande parte do país. A ladainha não é nova: com as secas, os níveis das hidrelétricas caem muito e é preciso acionar as usinas térmicas - mais caras e poluentes - para garantir a “segurança energética”. Os custos são repassados para os consumidores, ou seja, nós. Esse cenário tende a se tornar ainda mais frequente com o agravamento da crise climática, como já apontaram vários estudos.
O problema é que, se os eventos extremos se acentuaram nos últimos anos, a carestia no preço da luz remonta a tempos anteriores. A contradição é que a maior parte de nossa energia elétrica é produzida a partir da água, o que é bem mais barato em comparação com as fontes fósseis (carvão, petróleo e gás) e nucleares.
Mesmo assim, vira e mexe o Brasil figura nos rankings das tarifas mais caras do mundo. Por que isso acontece?
Sem querer dar explicações simplistas para um assunto propositalmente complicado, seguem alguns elementos que compõem o quadro de nosso problema.
Privatização do setor elétrico e preço teto
Um deles remonta à década de 90 e início dos anos 2000, quando iniciou o processo de privatização do setor elétrico. Nesse período, o setor foi fatiado em “geração”, “transmissão” e “distribuição”.
As concessões para as empresas privadas se deram sobretudo na distribuição, a partir de uma infraestrutura já instalada e que permite o lucro rápido. O resultado foi uma trajetória de aumento nas tarifas acima da inflação em todas as distribuidoras. Além do preço, o sucateamento das estruturas se mostrou um problema. E o recente apagão da Enel em São Paulo mostrou que investimento não costuma ser uma prioridade dessas empresas.
A reforma neoliberal do setor impôs ainda uma mudança na forma de calcular o preço da energia nas companhias. Se no modelo anterior, o parâmetro era o custo de produção mais uma margem de lucro média, a lógica passou a ser leilões com base em um “preço-teto”.
Isso abriu as portas para um descolamento do preço da energia com relação a seus custos de produção. Além disso, estabeleceram-se dois regimes diferentes de contratação: um de mercado regulado por contrato para as distribuidoras (cativo) e outro ambiente “livre” onde os valores são menores e destinados aos grandes empresários.
Assim o “equilíbrio” do sistema pressupõe que o peso das tarifas recaia sobre os consumidores cativos, que são as residências e pequenos comércios brasileiros.
Herança do governo Bolsonaro: privatização de Eletrobrás
No governo Bolsonaro, aconteceu o maior golpe desse processo: a privatização da Eletrobrás. A estatal detinha o controle de 48 hidrelétricas e cerca de metade dos reservatórios. Deixar tudo isso sobre controle de agentes privados é um risco sério do ponto de vista tanto da “segurança energética” quanto do direito à água, uma vez que os reservatórios têm usos múltiplos - abastecimento, transporte, turismo, irrigação… Além disso, a estatal garantia um preço da energia abaixo da média nacional.
Com a privatização, os preços da energia dessas usinas estão sendo reajustados, o que vai gerar novos aumentos tarifários. Sem a presença de uma empresa pública de grande porte, há ainda a dificuldade de coordenação em um sistema cada vez mais complexo com a entrada de novas fontes e os extremos climáticos. Não à toa, os países desenvolvidos não costumam abrir mão do controle estatal sobre um sistema tão estratégico.
Além disso, é preciso lembrar de outro presentinho deixado pelo governo Bolsonaro: uma dívida de R$ 500 bilhões a ser paga por nós na conta de luz. Além da privatização da Eletrobrás, que gerou um custo de mais de R$ 400 bilhões, houve ainda um empréstimo feito ao setor elétrico durante a pandemia de Covid-19 no valor de R$ 23 bilhões; um empréstimo de R$ 6,6 bilhões às empresas para arcar com custos da crise energética de 2021 (“conta escassez-hídrica”), e a contratação emergencial de usinas termelétricas caríssimas naquele período, no valor de R$ 39 bilhões.
Enquanto o preço da luz pesa na conta dos mais pobres, tudo vai muito bem, obrigado, para os acionistas privados da Eletrobrás. A empresa comemora um lucro líquido de R$ 7,56 bi no 3º trimestre de 2024, aumento de 588,3% em relação ao mesmo período de 2023.
Os interesses da burguesia do gás e do carvão
Enquanto isso, nas últimas décadas, as novas energias renováveis, especialmente a eólica e solar, passaram a ser mais incentivadas por políticas de governo e também a ter preços mais competitivos, passando a compor parte importante da nossa matriz, em especial as eólicas no Nordeste.
Uma vez que nosso sistema é interligado, em tese essas usinas podem suprir a falta de geração hídrica e vice-versa, garantindo a segurança do setor e uma das matrizes elétricas com maior percentual de renováveis do mundo. Claro que essas fontes de energia também têm grandes impactos socioambientais, mas esse é assunto para outro texto. O problema que ressaltamos aqui é a existência de um conjunto de interesses particulares pode estar atrapalhando esse processo.
Ao observar os dados do Operador Nacional do Sistema (ONS), vemos que há momentos em que as eólicas, mesmo sendo pagas para produzir, são praticamente desligadas, deixando de despachar para o sistema, enquanto usinas movidas a gás fóssil são acionadas, apesar de serem mais caras e poluentes. Por trás da decisão aparentemente irracional, podem haver interesses.
:: Saída para crise climática esbarra em interesses das classes dominantes ::
Uma matéria do UOL mostra que o lobby das energias fósseis no Congresso conseguiu inserir alguns “jabutis” (conteúdos alheios) no projeto de lei que regulamenta as eólicas offshore (no mar) no Senado. A operação favorece os irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da JBS e também da Âmbar Energia, que opera térmicas a carvão, e Carlos Suarez, o “rei do gás”, dono da Termogás. Uma manobra que pode transferir cerca de R$ 247 bilhões, direto de nossas conta de luz, para os bolsos desses valorosos representantes da burguesia nacional.
A questão agora é: como desarmar essa bomba?
Sempre que se discute preço da luz, uma abordagem muito usada pelas empresas, em especial os grandes consumidores de energia, é culpar os impostos e encargos do setor. De certo, eles têm um peso grande nas tarifas do povo, com destaque para a obscura “Conta de Desenvolvimento Energético”, determinada pela Aneel, que em 2023 chegou aos R$ 40,3 bilhões, sendo que 75% são subsídios aos grandes grupos econômicos industriais, do agronegócio e até do próprio setor elétrico.
No entanto, de maneira geral, encargos e impostos também são instrumentos para assegurar a tarifa social, a arrecadação e a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico no setor. E como buscamos demonstrar, não não culpados, sozinhos, pelos custos exorbitantes.
O problema é político.
Nossas classes dominantes escolheram transformar o setor elétrico cada vez mais em um instrumento para transferência de renda para setores da burguesia (inclusive financeira internacional) do que para assegurar o bem-estar das pessoas e o desenvolvimento nacional.
É preciso recuperar a soberania sobre este setor estratégico e adotar medidas para diminuir a tarifa para os mais pobres, em especial a ampliação da tarifa social, além de universalizar o acesso a partir das energias renováveis. Em plena crise climática, a solução para a transição energética e o preço das tarifas precisa passar por um maior controle popular e a compreensão da energia como um direito de todos.
* Elisa Estronioli é jornalista e integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino