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Será que existe Vida Além do Trabalho?

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"Mais de 2 milhões de novas assinaturas em uma petição pela redução da jornada de trabalho foram alcançadas" - Foto: Camila Araujo
A história mostra que as conquistas da classe trabalhadora sempre vieram com muita briga

Nos anos 90 uma propaganda da revista Crescer mostrava gêmeos, ainda no útero, questionando se existia vida após o parto, um deles respondia não saber, afinal, “nunca ninguém voltou pra contar”. 

Com a mesma entonação dos fetos, por vezes eu, você e muitas trabalhadoras e trabalhadores brasileiros se perguntam se existe vida além do trabalho e, por muitos anos, a resposta na minha mente foi sempre a mesma: “hmm, não sei, nunca ninguém voltou para contar”. Até que me deparei com o livro A vida não é Útil, do ambientalista, filósofo e indígena da etnia krenak, Ailton Krenak:

“O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso” (Krenak, 2020, p.59).

Essa frase se tornou um mantra pra mim, sempre que possível, volto a escrever, postar e repetir: será que eu também não consigo “conviver com a ideia de viver à toa no mundo”? Será realmente necessário que uma parcela tão grande da população brasileira, uma maioria absoluta de pessoas negras, trabalhe 6 em cada 7 dias? Será que, enquanto sociedade, estamos preparadas para acabar com isso?

De acordo com matéria de agosto de 2022 publicada pela Associação Brasileira de Medicina do Trabalho (ABMT), uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) aponta que 1 em cada 5 pessoas, que trabalham no mundo corporativo, sofre com a Síndrome de Burnout. Em janeiro do mesmo ano, a Síndrome de Burnout passou a ser classificada como uma doença ocupacional, fazendo parte da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 

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Faz um ano que comecei a levar o tema do excesso de trabalho para minhas redes sociais, um atestado médico que me afastou quatro meses tinha como diagnóstico a tal Síndrome de Burnout. E, mesmo que uma quantidade absurda de pessoas esteja agora com a saúde comprometida pelo excesso de trabalho, eu passei a perder dezenas de seguidores todos os dias. Muitos trabalhadores e trabalhadoras escreveram e ainda escrevem nos comentários que “é só se esforçar para conseguir um emprego melhor” ou “é só empreender e não ter patrão”. Ou seja, aparentemente não, enquanto sociedade não estamos prontas para destruir a tradição do excesso de trabalho. 

A história mostra que as conquistas da classe trabalhadora sempre vieram com muita briga, muita luta e, especialmente, muita conscientização e participação popular.

Por exemplo, todo estudante das séries finais do Ensino Fundamental sabe que no dia 13 de maio de 1888 a princesa Isabel assinou a Lei Áurea e acabou com a escravidão no Brasil. 

No entanto, o que a absoluta maioria da população brasileira desconhece - mas que foi publicado no livro Dicionário da Escravidão e Liberdade (2018) em artigo da socióloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Ângela Alonso -,  é que o Ceará e o Amazonas já haviam, em 1884, abolido a escravidão. A maior parte da população brasileira nunca ouviu falar das redes libertadoras, táticas de cooperação que “conectavam a fazenda ou casa do fugitivo, o sistema de transporte, um ou mais abrigos provisórios e um dos destinos finais - Santos [liberto em 1886], Ceará ou quilombos locais” (Alonso, 2018, p.363).

Já no final de 1887, a imprensa abolicionista convocou luta armada pelo fim da escravidão no Brasil, ao passo que o exército se negou a caçar fugidos, inviabilizando a repressão do Estado. Assim, a chegada do ano de 1888 contou com “setores da elite social, do Judiciário, da Igreja, a grande mídia e o Partido Liberal, [que]  temerosos de uma guerra civil como a norte-americana, defenderam o fim da escravidão no curto prazo” (Alonso, 2018, p.363). 

Ainda segundo Alonso (2018), apenas em fevereiro de 1888, quando um abolicionista foi linchado no interior de São Paulo quase ao mesmo tempo em que outro abolicionista, Joaquim Nabuco, conseguiu do papa uma carta pró-abolição, é que a princesa Isabel e uma ala do Partido Conservador se decidiram pelo fim da escravidão.

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“Em 3 de maio de 1888, na abertura do ano parlamentar, anunciou-se o projeto [...] a tramitação correu em regime de urgência e, na votação, apenas 9 deputados e 6 senadores foram contrários” (Alonso, 2018, p.364).

Assim, de acordo com o historiador, professor doutor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Walter Fraga, em seu artigo Pós-Abolição; o dia seguinte - também publicado no Dicionário da Escravidão e Liberdade -, na cidade do Rio de Janeiro de 13 de maio de 1888, “com a expectativa de que finalmente fosse votado no Senado o projeto de lei que abolia a escravidão, desde a manhã, uma multidão ocupou as ruas centrais da cidade e postou-se em volta do edifício do Senado e do Paço Imperial. O clima era de entusiasmo e festa” (Fraga, 2018, p.352).

Ainda segundo o historiador, às 14h quando o texto seguiu para a sanção imperial, “alguns jornais chegaram a afirmar que a concentração popular tomava uma proporção nunca antes vista em outra manifestação já ocorrida na cidade. [...] Já eram mais de 15h quando a princesa Isabel finalmente assinou a lei que aboliu a escravidão. [...] Quando apareceu na sacada do prédio, Isabel foi ovacionada por 10 mil pessoas que se aglomeravam na praça D. Pedro II” (Fraga, 2018, p.352).

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Eu, particularmente, continuo sem saber se estamos de fato prontas e prontos para alterar nossa visão de mundo para uma que dê valor ao ócio. No entanto, desde que comecei a falar do assunto, conheci o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), fundado pelo vereador recém eleito pela cidade do Rio de Janeiro, Rick Azevedo, que tem como missão o fim da escala 6x1. Desde que conheci o movimento VAT, 

- Mais de 2 milhões de novas assinaturas em uma petição pela redução da jornada de trabalho foram alcançadas;

- A deputada Erika Hilton propôs uma PEC sobre o tema;

- 231 deputados e deputadas deram suas assinaturas em apoio ao protocolamento da PEC de Erika Hilton;

- Milhares de pessoas foram às ruas no dia 15/11/24 em ao menos 70 cidades brasileiras pautando o fim da escala 6x1;

- Depois de muitos meses no negativo, o número de seguidores das minhas redes sociais voltou a crescer.

Em outras palavras, mais do que ontem, hoje acredito que o calor do momento possa nos preparar para os embates ainda por vir, especialmente porque o projeto de Erika Hilton prevê não apenas o fim da escala 6x1 - onde o trabalhador folga apenas uma vez por semana -, mas também a redução da carga horária semanal de 44 para 36 horas, sem redução de salário ou benefícios.

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Quer dizer, mesmo parecendo que parte da direita está cedendo, ela ainda vai tentar alterar o texto da PEC de forma a diminuir o impacto no lucro das empresas, o que não é novidade: a primeira versão do texto da Lei Áurea foi redigida pelo engenheiro e empresário André Rebouças nos pilares de sua democracia rural: abolição, sem indenização para os senhores e distribuição de pequena propriedade para ex-escravizados (Alonso, 2018, p.364).

Ontem e hoje, acredito na educação, na militância e no poder do povo brasileiro. Vale lembrar que “entre 1868 e 1871, dissidentes da elite imperial e apadrinhados criaram 25 associações antiescravistas em 11 províncias. [...] De 1878 a 1885, formaram-se 227 sociedades e se realizaram cerca de 600 conferências. Essa ocupação ostensiva e pacífica do espaço público difundiu as ideias nas grandes cidades e atraiu novos ativistas, de estratos médios e baixos” (Alonso, 2018, p.359-60).

Militar em todos os espaços, em todas as oportunidades e, assim como fazem os cristãos: sem definição de quem deve ou não ouvir. Que neste novembro negro, quando pela primeira vez a importância de Zumbi dos Palmares e do desenvolvimento de uma consciência negra é reconhecida por meio de um feriado nacional, estejamos todos em alerta e dispostos a criar uma nova realidade, uma que seja sustentável para a classe trabalhadora e que responda de forma afirmativa que sim, existe uma vida além do trabalho.

Por fim, para quem se pergunta sobre o velho argumento de que se a vida do trabalhador melhorar “a economia vai quebrar e o desemprego vai reinar”, indico o vídeo do historiador e ativista Jones Manoel: Fim da escala 6x1 vai quebrar a economia?   

A hora é essa: assine a petição online e vamos todos juntos pelo fim da escala 6x1!

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* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino