Distrito Federal

quem cuida do lixo

Catadores que saíram de ocupação no Noroeste vivem sob medo de apreensão e ameaça de despejo

Trabalhadores perdem renda por falta de documentação; auxílio-aluguel garantido por Sedes-DF está em atraso

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Integrantes da Associação de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis e Retornáveis do Cerrado se juntaram para ajudar catador a pagar multa e recuperar carro apreendido - Foto: Bianca Feifel

Além de encarar uma dura rotina de trabalho, catadores e catadoras de materiais recicláveis do Distrito Federal têm enfrentado o medo diário de voltarem das ruas para os galpões sem seus materiais ou meio de transporte, colocando em risco o sustento da família. 

Esse temor se concretizou para Edivan Gomes de Sousa nesta segunda-feira (25). O catador de 49 anos, pai de seis filhos, teve seu carro, carretinha e materiais apreendidos em abordagem da Polícia Militar do DF (PMDF). 

“Eu me senti péssimo. Se eu não estivesse trabalhando, estivesse fazendo alguma coisa errada, eu ficaria calado. Mas eu não estava, né? Eu estava trabalhando no certo. Nunca fiz nada de errado”, desabafou o catador. 

Edivan tem contrato fixo com um prédio localizado na Asa Norte, onde recolhe os objetos descartados e os leva para a Associação de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis e Reaproveitáveis do Cerrado para separação. Foi no caminho de volta à Associação, localizada no Setor de Abastecimento e Armazenamento Norte (SAAN), que o catador foi abordado pelos policiais, em via próxima ao Setor Militar Urbano (SMU). 

O trabalhador foi autuado por não possuir o Manifesto de Transporte de Resíduos (MTR), documentação que autoriza o transporte do material até a destinação final ambientalmente adequada, o que lhe rendeu uma multa de mais de R$ 7.500,00. O MTR precisa ser gerado para cada remessa de resíduo, por meio de um processo que envolve uma série de etapas que precisam ser feitas no portal eletrônico do governo.

Segundo Edivan, ele não tinha conhecimento da necessidade de possuir o MTR. À princípio, os policiais informaram que apenas os materiais e a carretilha seriam apreendidos. Mas, ao chegar à Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística do DF (DF Legal), o carro do catador também ficou retido. 


Edivan Gomes ao lado de materiais recicláveis que retirou das ruas e triou para reciclagem / Foto: Bianca Feifel

Além da multa por falta da documentação, ainda em aberto, Edivan foi obrigado a pagar R$ 645,68 ao DF Legal para ressarcir os custos operacionais e de depósito. O valor foi pago com ajuda de outros catadores da Associação. O trabalhador conseguiu retirar o carro nesta quarta-feira (27). 

"Eu falei para o policial, não faz isso comigo não que eu sou pai de família, mas eles não querem saber. Muita gente não reconhece o nosso trabalho, vira a cara pra gente. Mas somos nós que estamos limpando o meio ambiente”, destacou Edivan.

Os três dias sem trabalhar lhe renderam um prejuízo de cerca de R$ 1000. Só os materiais apreendidos no dia abordagem, cerca de 2000 mil litros segundo o auto de apreensão da polícia, gerariam uma renda de aproximadamente R$ 200. Os objetos foram enviados para cooperativas do Serviço de Limpeza Urbana do DF (SLU). 

“Ou seja, o que está acontecendo é que estão tomando o pão da boca dos filhos dos catadores autônomos e levando para as cooperativas da SLU”, avaliou Raimunda Nonata de Souza, presidente da Associação de Catadores do Cerrado. “Eu acho isso uma injustiça. Uma multa de mais de R$ 7 mil em cima de um catador autônomo que sai de casa 4 horas da manhã para catar sua reciclagem, limpar a rua, e, assim, salvando a natureza”, afirmou em tom de revolta. 


Raimunda Nonata de Souza, presidente da Associação de Catadores e Catadoras do Cerrado / Foto: Bianca Feifel

A presidente levou o caso à Defensoria Pública do DF para recorrer à multa. Segundo Raimunda Nonata, a defensora que a atendeu disse que há pelo menos 15 processos semelhantes abertos no órgão, em que catadores tiveram seus materiais e meio de transporte apreendidos. 

“É uma humilhação, um sofrimento. Eu trabalho com medo. Sair 5h da manhã para trabalhar sabendo que a qualquer momento pode ter o material apreendido. É difícil. Não é garantido, a qualquer hora podemos perder tudo. Quando chegamos aqui na Associação, a gente até se benze, diz ‘graças a Deus cheguei até aqui’, porque na rua é arriscado perder seu material, apreenderem seu carro. Aí o dia é perdido. Não tem como ganhar dinheiro desse jeito. Mas é assim mesmo, né? A gente tem que trabalhar arriscando”, desabafou Márcio José Maciel, catador de 41 anos. 

O que diz o DF Legal?

Procurada pela reportagem, a Secretaria DF Legal afirmou que a aplicação de multas por falta de Manifesto de Transporte de Resíduos (MTR) faz parte da fiscalização rotineira da pasta. A cobrança é regulamentada pela por portaria conjunta de 2021.

A secretaria confirmou que os materiais recicláveis apreendidos foram encaminhados para uma cooperativa. 

“Em resumo, todo transporte de resíduo no DF precisa que seja emitido o MTR gratuitamente pelo sistema Sinir para informar a destinação correta dos materiais transportados. Caso não haja esse registro, o responsável é multado e tem o veículo apreendido. Nos casos de impossibilidade de identificação do gerador, o transportador é autuado”, completou a pasta. 

Atraso no auxílio aluguel 

A Associação de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis e Reutilizáveis do Cerrado foi criada por catadores que moravam em uma ocupação no Noroeste. Após 23 anos de luta diante as ameaças de despejo, em fevereiro deste ano, os moradores fizeram um acordo com o governo do DF (GDF), a Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), e a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF (Sedes DF).

25 famílias foram contempladas com moradias no Sol Nascente, entregues pela Codhab. Outras 43 famílias, ainda na luta por habitação, foram habilitadas para receber o auxílio-aluguel pago pela Sedes. O pagamento do auxílio, no entanto, vem sofrendo uma série de atrasos, colocando os catadores, mais uma vez, na mira do despejo. 

As parcelas de setembro e outubro, que estavam atrasadas, foram pagas pela Secretaria um dia após o Brasil de Fato DF entrar em contato com a pasta questionando o motivo do atraso. O auxílio referente ao mês de novembro ainda está em atraso. 


Márcio José Maciel, catador de 41 anos, diz que trabalha com medo de perder tudo e sofre com atrasos do auxílio-aluguel da Sedes-DF / Foto: Bianca Feifel

Em resposta, no dia 18 de novembro, a Sedes informou que tem empreendido esforços junto à Secretaria da Economia, para obtenção de orçamento suplementar, a fim de honrar com obrigações econômicas de origem contratual, de pessoal e dos programas de transferência de renda. 

“Orçamento suplementar consiste em complementar o provisionamento feito inicialmente na Lei Orçamentária Anual (LOA). Isto ocorre, em grande parte, em razão de despesas não previstas pelo Governo, face ao advento de novas políticas públicas ou em razão de situações emergenciais que oneram o orçamento até então disponível. Tal medida é uma prática adotada por governos de todos os níveis: federal, estadual e municipal /distrital”, apontou a Secretaria em nota.

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Edição: Flávia Quirino