No Distrito Federal, duas mães de crianças com doenças raras denunciaram que um escritório de advocacia especializado em Direito Médico e da Saúde de não repassar valores de indenizações e de agir com falta de transparência na quitação de contas durante processo.
Segundo informações, elas acionaram a Justiça contra planos de saúde — por meio do escritório localizado na Asa Sul — devido à ausência de atendimento, consultas e terapias adequadas nos serviços. No entanto, após ganharem as ações, descobriram que alguns dos valores das indenizações, depositados na conta bancária da advogada responsável, não chegaram a ser transferidos para as responsáveis das crianças.
As medidas foram judicializadas pelas famílias porque os planos de saúdes utilizados não garantem terapias com profissionais de qualidade. Andrea Medrado conta que sua filha tem uma síndrome rara chamada Pitt-Hopkins (PTHS), é autista, possui deficiência intelectual e é não-falante. Ela explica que procurou o escritório de advocacia, em 2020, para garantir direitos básicos para a filha.
Porém, em outubro deste ano, Andrea recebeu uma ligação de uma Vara Cível questionado se ela havia recebido, da advogada do escritório, o valor de um acordo contra uma das empresas do plano de saúde. Sem ter o conhecimento dessa transferência, ela procurou a advogada responsável pelo caso que, na ocasião, disse que o dinheiro estava na conta dela, mas estava bloqueado pela Justiça, uma vez que a juíza havia determinado que a criança poderia acessar o valor com apenas 18 anos.
De acordo com Andrea, a advogada informou que ia recorrer o caso alegando que a criança é “incapaz” e “deficiente”, e que “não se sabe se ela vai alcançar a maior idade”. “Foi doloroso ouvir isso, porque a síndrome da minha filha não é progressiva nem degenerativa, mas entendi que ela usou essa justificativa no momento. Perguntei o que deveria responder, e ela me orientou a mentir para a Justiça. Ela até escreveu a mensagem e enviou um áudio explicando como proceder”, conta Andrea.
Dias depois, Andrea relata que recebeu um e-mail da mesma Vara Cível, referente a um dos processos, solicitando o extrato bancário da conta dela para a comprovação da transferência bancaria. Ela conta que foi, a partir daí notou que algo estava errado, uma vez que nunca recebeu o repasse desse processo, no valor de R% 75 mil reais.
“Fui atrás para descobrir se em outros processos também tinha acontecido a mesma coisa e sim. Em outro processo, contra outro plano de saúde, foram emitidos quatro alvarás; entretanto, a advogada só me repassou dois. Dos outros dois, ela não falou nada e não me transferiu nenhum recurso. O Ministério Público está atrás dela desde fevereiro, solicitando a devolução do dinheiro. Eles bloquearam a conta dela, mas havia apenas R$ 127,00”, relata. Desse processo em questão, não foram realizados pagamento, conforme Andrea, de dois alvarás, um no valor de R$ 31,3 mil, referente a setembro de 2023, e outro no valor de R$ 31,3 mil, referente a maio de 2024.
Em outro documento, a 6ª Vara Cível de Brasília fez o pedido que um dos planos de saúde refizesse o depósito de um acordo judicial em conta vinculada ao processo, após identificar irregularidades no pagamento anterior. O caso envolve um acordo de R$ 75 mil, incluindo danos morais, astreintes e honorários advocatícios, firmado entre a empresa e a autora.
Inicialmente, o valor foi depositado na conta da advogada da autora, Alexandra Moreschi, conforme os termos do acordo. No entanto, o Ministério Público questionou a operação, argumentando que o pagamento deveria ser realizado em conta judicial, considerando que o processo envolve os interesses de uma pessoa incapaz. Mesmo após intimações e decisões reiterando a necessidade de um depósito judicial, a advogada resistiu à ordem e não apresentou comprovação sobre a destinação correta dos valores.
No documento, a juíza reafirmou a obrigação do depósito em conta judicial e concedeu 48 horas para o cumprimento. A magistrada destacou que a empresa do plano de saúde cometeu erro ao realizar o pagamento diretamente na conta da advogada antes da homologação do acordo. Por outro lado, considerou grave a resistência da advogada em cumprir a determinação judicial, alertando para possíveis sanções, como comunicação à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e responsabilização criminal por desobediência.
Nesta segunda-feira (25) foi publicado no TJDF uma decisão da juíza Gabriela Jardon. "Estamos nos autos diante do grave panorama de possível apropriação de R$ 75.000,00, destinados a uma criança com deficiência pelo seu plano de saúde, por sua advogada, crime que, se de fato ocorrente, só o foi possível pela desídia da UNIMED em depositar o valor acordado na conta corrente da advogada antes de homologado judicialmente o acordo". Na mesma decisão, a juíza oficiou a OAB-DF para "eventual apuração de conduta violadora dos deveres funcionais da advogada".
O escritório de advocacia em questão foi procurado pelo Brasil de Fato DF. Na ocasião, a advogada disse que as mães não teriam dado ao escritório a "oportunidade de sentar e explicar o que estava acontecendo". A advogada alega difamação, porque, segundo ela, em nenhum momento houve negativa de prestação de contas.
A advogada justifica que as transferências bancárias eram feitas em sua conta bancária pessoal, porque quando Andrea fechou o contrato com eles, o escritório ainda não tinha CNPJ registrado. "Não tem problema nenhum advogado receber dinheiro em conta pessoal, quando ele consta na procuração, tanto que o Tribunal [Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios] transfere normalmente. Se fosse ilegal, o Tribunal não faria", completa.
Ela ainda afirma que, sobre a multa, o escritório tem um percentual sobre esse valor, além dos honorários advocatícios. "Eu informei a Andreia que estava tendo essa discussão, o valor estava bloqueado, e que estava comigo. Eu falei com ela com todas as letras e que eu não ia repassar para ela, porque se o juiz entendesse que eu precisava devolver esse dinheiro, a responsabilidade era minha", diz a advogada.
Nas redes sociais, Andrea diz que não foi acordado que o escritório ficaria com 100% dos valores e nem teria direito a tomar qualquer decisão sobre a destinação das verbas porventura recebidas. "Se nós acionamos a justiça justamente porque o plano não estava cumprindo com a sua parte em relação as terapias, como os valores não seriam para este fim? O escritório tem direito aos honorários, não aos valores integrais dos processos. Era só descontar os honorários e me passar o restante, esse era o acordo e não ficar com todo o dinheiro", questiona.
Também procurado, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT), em nota, informa que vai aguardar a intimação da advogada e sua resposta no processo, após o que se manifestará a respeito das providências cabíveis na espécie.
Falta de transparência
Outra mãe a fazer a denúncia foi Camila Pinheiro, que buscou os serviços do escritório, em 2021, quando o plano de saúde negou a cobertura de consultas e terapias. Ela conta que a advogada não noticiou sobre os valores das ações movidas contra as empresas de plano de saúde. Camila conta que, em outubro, o Ministério Público emitiu uma decisão cobrando a comprovação do repasse de R$ 23.000, referente a novembro do ano passado. "Nunca soube desse valor”, explica Camila.
A responsável relata que sempre entrava em contato com escritório para saber sobre o andamento dos processos. Nisso, sempre recebia como respostas mensagens pedindo para ela ter “calma”, que não tinha novidades ou que iriam checar.
Porém, depois do MP emitir a decisão para comprovar o repasse, Camila informa que resolver investigar um pouco mais. Ela conta que das informações checadas, de 2023 até este ano, um montante de mais de R$ 200 mil foi recebido nos processos movidos por ela. “Nisso, estava o valor de consultas e terapias, terapias que minha filha nunca chegou a fazer, que a advogada fez acordo e eu não sabia. Ela recebeu o valor desse acordo e também eu não sabia”, relata.
“O que estamos colocando em questão não é o fato dela ter recebido ou não o valor, porque a gente sabe que pode entrar na conta do advogado contanto que a gente seja informada. Inclusive, no contrato que eu tenho com ela, está lá falando que a gente tem direito a uma reunião por mês de prestação de contas”, diz.
Após verificar as informações, Camila conta que passou a ser mais exigente com a prestação de contas. Em uma das mensagens trocadas entre ela e a advogada, Camila relata que foi chamada de “desequilibrada” e que ela “precisava dar uma esfriadinha na cabeça”, já que segundo a representante, ela mandava mensagem “todo santo dia”.
“Enquanto família de pessoa com deficiência, a gente vive nessa situação de vulnerabilidade, porque a gente tá lutando o tempo inteiro por algum direito básico das nossas filhas, seja a saúde, seja na educação”, diz Andrea. “Como a gente tinha uma relação de confiança, como tem que ser uma relação entre cliente e advogado, porque a gente precisa contar coisas íntimas da nossa vida, a gente precisa expor coisas para os advogados, a gente enviava documentos íntimos, né, de coisas da gente, dos nossos”, completa.
Ao jornal, a advogada diz que havia notificado a Camila que seriam feitos "bloqueios de alguns valores", porque, segundo ela, estava ficando "muito pesado" pela quantidade de processos movido pela mãe. Ela afirma que alguns valores foram descontados, mas que não chegaria ao valor da dívida de Camila com o escritório, que seria de R$ 400 mil.
Em um dos processos, o TJDF publicou nesta terça-feira (26), uma decisão da juíza Indiara Arruda de Almeida Serra, que pede esclarecimento e comprovação de valores levantados pela advogada, "quais se destinavam à autora e quais diziam respeito a honorários advocatícios, devendo estes serem subtraídos dos valores pleiteados". E também encaminha que sejam anexados contratos de prestação de serviços advocatícios firmados com os réus e as procurações outorgadas em cada processo".
Sem medicamentos
Todo o dinheiro ganho nos processos é usado para a compra de medicamentos, terapias e consultas, assim como determina a Justiça. Camila conta que sua filha possui Síndrome de Rett, é autista nível de suporte três e tem epilepsia de difícil controle. Um dos medicamentos usado no tratamento é o canabidiol, utilizado, principalmente, no controle de convulsões.
"Minha filha, sem o canabidiol, convulsiona. Ela fica na UTI igual já aconteceu e eu tenho isso em laudo que é falta do medicamento, ela pode convulsionar e ir a óbito. Ela não pensou nisso", pontua.
Ela conta que acredita que, ao todo, foram apropriados R$ 200 mil, mas ainda não tem certeza porque nem todos os processos foram averiguados. "De 2023 para cá, foi isso entrando dinheiro de medicamento e consultas e terapias, mesmo sendo valores que não podem ser deduzidos", diz Camila.
"Ela [a advogada] realmente conseguiu equipamentos para a minha filha, andadores e carrinho. A gente não está questionando ela ter deduzido os honorários dela, o que não pode é ela ficar com tudo e não prestar conta de nada", afirma a mãe.
As mães contam que realizaram boletim de ocorrência e solicitaram investigação junto ao Tribunal de Ética e Disciplina (TED) da Ordem dos Advogados do DF (OAB-DF).
Em nota, a OAB informa que o caso foi levado ao conhecimento do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem, órgão que julga processos disciplinares. A instituição também comunica que, por força de lei, os processos correm sob sigilo.
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Edição: Flávia Quirino