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Coluna

O papel da militância negra na construção de alternativas na esquerda

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"Uma das formas de atuação do dispositivo é o epistemicídio — a exclusão sistemática de negros da produção e reconhecimento de saberes". Foto - Juliana Nascimento | Coletivo Nuvem Negra
Manutenção das desigualdades se dá por meio de um dispositivo de racialidade

Sueli Carneiro, em Dispositivo de Racialidade: A Construção do Outro como Não Ser como Fundamento do Ser, oferece uma análise indispensável para compreender como a lógica de exclusão racial estrutura as relações de poder na sociedade brasileira, que permeia inclusive os partidos e movimentos de esquerda.

Ela revela que a manutenção das desigualdades se dá por meio de um dispositivo de racialidade sustentado por um contrato racial que organiza e naturaliza a subalternização da população negra. Esse mecanismo vai além do econômico, determinando os papéis sociais e posicionando os negros como "não-ser" para legitimar os privilégios do "ser".

Uma das formas de atuação do dispositivo é o epistemicídio — a exclusão sistemática de negros da produção e reconhecimento de saberes. Ele opera por meio da negação do acesso à educação de qualidade, da deslegitimação do negro como criador de conhecimento, da imposição de uma indigência cultural e material, e da desvalorização da capacidade cognitiva da população negra. Porém, resistir a esse processo exige resgatar as trajetórias de intelectuais negros como Abdias do Nascimento, Milton Santos, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez e Nego Bispo, que romperam com a exclusão epistemológica e construíram saberes que desafiam as bases desse contrato racial.

Esse legado nos leva a refletir sobre o cenário político atual, onde militantes negros e periféricos enfrentam exclusões semelhantes dentro de partidos e organizações de esquerda. Apesar do discurso de inclusão, muitos negligenciam o fortalecimento do trabalho de base nas periferias.

No caso do Distrito Federal, as reuniões, centralizadas no Plano Piloto, ignoram a realidade dos militantes que vivem nas quebradas, forçando-os a longas jornadas em transporte público, sem preocupações com necessidades básicas como passagem e alimentação. Por conta de eleições, grupos que nunca pisaram na periferia aparecem em busca de cooptação de movimentos e pessoas, mas reagem de forma contrária quando reuniões são marcadas em regiões como Ceilândia, Santa Maria, Paranoá.

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Essa postura evidencia o desprezo pelas vivências periféricas e reflete o eurocentrismo que Grada Kilomba analisa: esses espaços são arenas de violência simbólica, onde negros são posicionados como "outros", enquanto a elite branca, frequentemente de classe média, assume o papel de especialista nas questões raciais, sem incluir ativamente os sujeitos dessas questões.

Além disso, a inclusão de negros em posições de liderança nesses espaços ocorre de forma tokenista e competitiva, priorizando figuras públicas já conhecidas e desvalorizando militantes negros com ampla experiência nos movimentos sociais e negro. A realidade é que muitas direções partidárias permanecem brancas e alheias às demandas da periferia, relegando os militantes negros à sobrecarga física e mental, sem reconhecimento ou suporte, enquanto militantes brancos ascendem com facilidade.

Sueli Carneiro nos ensina que a luta contra o dispositivo de racialidade não deve ser confundida com alianças à direita, mas também nos convoca a questionar as práticas da esquerda. O fracasso dos partidos em representar efetivamente a negritude e a periferia exige a construção de alternativas. Coletivos como Pelas Vidas Negras DF mostram que o vínculo entre militantes deve ser baseado em experiências compartilhadas e objetivos comuns, e não na lógica de disputa partidária.

Portanto, a luta por justiça racial e socialista passa pela construção de espaços que valorizem as vivências negras e periféricas.

É essencial perguntar aos dirigentes: quantas pessoas da periferia ocupam cargos de liderança? Quantos negros, indígenas e mulheres negras estão representados nas direções? Se as estruturas da organização não reflete a diversidade do Brasil, possivelmente reproduzirá violências e dificilmente será capaz de implementar políticas reais de reparação.

Buscar organização com quem compartilha essas vivências e lutas é essencial para romper com o dispositivo de racialidade. Essa é a tarefa coletiva que deve guiar tanto a militância periférica quanto a Maloka Socialista: desafiar a lógica colonial, afirmar o protagonismo negro e reconstruir  em confluência, as bases do poder e do saber.

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*Marcelo Vinícius é estudante de História na Universidade de Brasília, assessor do Deputado Distrital Max Maciel, produtor cultural e militante da Maloka Socialista, uma força política de quebrada do Psol.

**Samuel Vitor Gonzaga é coordenador da Rede Emancipa e do Pelas Vidas Negras DF e estudante de direito na UnB.

***Revisão: Lara Lis é estudante de Serviço Social na UnB, pesquisadora, militante da Maloka Socialista, colaboradora do Ministério da Igualdade Racial.

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino