Corte recorrente de recursos afeta a produção científica e exige atenção do governo
A pós-graduação surge no Brasil entre 1950 e 1960 a partir de ações do Estado e acordos internacionais de cooperação visando o desenvolvimento socioeconômico e científico do país. A produção científica já existia em institutos independentes, sem integração ao ensino.
Nessa fase inicial, a influência norte-americana esteve presente por meio da adesão do Brasil, em 1950, ao programa Ponto IV, proposto pelo presidente norte-americano Harry Truman. O programa se destinava a assegurar colaboração e intercâmbio de tecnologia entre os países.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) foi criada em 1951 e favoreceu a ampliação de investimentos em educação superior. A partir de 1961 foram criados os primeiros programas brasileiros de pós-graduação. A rápida expansão do sistema exigiu uma regulamentação que se deu em 1965 pelo Parecer nº. 977, conhecido como Parecer Sucupira. Este, estabeleceu a subdivisão nos níveis de mestrado e doutorado, além de separar formalmente os cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) e lato sensu (especialização), exigir o credenciamento dos programas pelo então Conselho Federal de Educação e estabelecer a produção científica e a formação de novos docentes como prioridade dos programas.
Em 1975, o Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) já contava com 50 Instituições de Ensino Superior (IES), que ofereciam 370 cursos de mestrado e 89 de doutorado[1]. Nesse ano foi elaborado o I Plano Nacional de Pós-Graduação com o propósito de estabelecer as diretrizes, objetivos e metas para o SNPG.
Em abril de 2024, de acordo com os dados da Plataforma Sucupira, apresentados no Parecer CNE 331/2024, o SNPG possuía 4.658 programas de pós-graduação e 7.271 cursos. Desses programas, 1.967 possuem apenas o curso de mestrado. A maioria dos programas está concentrada na região Sudeste (1.970), Sul (981) e Nordeste (956) e menos nas regiões Centro-Oeste (396) e Norte (289). Considerando as conceituações da Capes, existem 971 programas com conceito três, 1.779 com conceito quatro, 1.043 com conceito 5 (cinco), 415 com conceito 6 (seis), 266 com conceito 7 (sete) e 95 têm conceito A. Esses dados mostram o perfil dos programas do SNPG e as condições da produção científica no País, que se concentra, sobretudo, vinculada à Pós-graduação.
Se considerarmos a dimensão continental e a diversidade de problemas que afetam a realidade socioeconômica, política, cultural, epidemiológica e ambiental do País, o SNPG ainda é limitado e de pouco alcance. O corte recorrente de recursos, a insuficiência de docentes para atender às demandas, as condições precárias de trabalho docente, a insuficiência de bolsas para mestrandos e doutorandos afetam a produção científica e exigem atenção do governo.
Porém, as medidas em curso são insuficientes. O debate sobre o Plano Nacional de Pós-Graduação 2024-2028 (versão preliminar), que contém os compromissos relacionados à Pós-graduação, foi limitado. Seu conteúdo exige aprofundamentos e melhorias. Neste texto trataremos não do PNPG, mas do parecer CNE nº 331/2024, aprovado em 12 de junho de 2024, encaminhado para apreciação do Ministro da Educação, que o devolveu ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para reformulação e análise posterior. O Parecer traz recomendações ao PNPG que podem comprometer o SNPG e as condições para a produção científica no País.
A primeira recomendação quebra a prioridade de produção científica e formação de novos docentes que hoje orienta estes programas, ao propor redirecioná-los para o desenvolvimento de habilidades e competências para atender às necessidades do mercado e estimular o empreendedorismo. Nessa direção, dois elementos se destacam. Por um lado, a recomendação aponta como necessária a articulação entre academia e empresas, de modo que haja um orientador acadêmico e outro da empresa na formação de mestres e doutores. Por outro, defende a priorização dos cursos de mestrado e doutorado profissionais. Se acatada, essa recomendação transformará o SNPG em um estrato de aperfeiçoamento da graduação, voltado para os interesses dos capitais, e não para produzir ciência para enfrentar os problemas centrais que afetam o país como a fome, a desigualdade social, a emergência climática, entre outros.
Outra recomendação temerosa é a que atribui maior autonomia de gestão às Instituições de Ensino Superior (IES), tidas como “consolidadas”, ou seja, que possuem, no mínimo 10 programas de nota 6 ou 7. Estas poderão criar, transformar os seus cursos, fundi-los, integrá-los em redes e compartilhamento, decidir sobre o tempo de formação, sem precisar de aprovação da CAPES/MEC. Ademais, seriam as universidades priorizadas tanto em relação à autonomia de gestão, quanto em relação ao financiamento. Mas, o que isso significa? Atualmente, apenas 17 universidades atenderiam aos requisitos para serem consideradas “consolidadas”.
Destas, 14 encontram-se no Sudeste/Sul, 2 no Nordeste e 1 no Centro-Oeste. Essa orientação implica o desmonte do SNPG, valorizando os programas mais desenvolvidos e desarticulando os que estão em fase de estruturação. Além disso, cristaliza a concentração de recursos e a centralização dos programas na região Sudeste do país. A região Norte não possui nenhuma universidade que atenda a esses critérios e seria totalmente privada das condições para a produção científica, vinculada à realidade, o que limitará o desenvolvimento local, articulado ao regional e ao nacional, com vistas à redução das desigualdades que marcam o Brasil. Ademais, essa recomendação, estimula o aligeiramento da pós-graduação, permitindo que as universidades “consolidadas” reduzam a duração dos cursos de mestrado e doutorado.
Mais uma recomendação caricata segue a lógica inversa à universalização da pós-graduação, ao propor que o financiamento da pós-graduação não seja automático, mas, que priorize as universidades “consolidadas” e também os cursos de doutorado e pós-doutorado de outras instituições. A proposta é valorizar os programas mais desenvolvidos inibindo a criação de novos. Essa é uma aposta no aprofundamento da elitização dos cursos de doutorado e na concentração da produção da ciência.
O parecer orienta que ao invés de abrir novos cursos, deve-se estimular matrículas nos programas com notas mais elevadas, com isso, estimula a migração de discentes das áreas mais pobres para os grandes centros, dificultando o acesso destes à pós-graduação. Essa perspectiva tende a se articular com as recomendações que fortalecem a EaD na pós-graduação, ampliando o ataque à qualidade da formação e da pesquisa.
O fim dos mestrados como pré-requisitos para o doutorado, atribuindo a esses o papel de aprofundamento profissional, com a duração de um ano, é mais uma recomendação questionável e um impulso ao aligeiramento da formação de doutores. Atualmente existem exceções de realização de teses sem pré-requisitos de mestrado, porém, é preciso ponderar se a transformação das exceções em regras atribuirá maior qualidade aos cursos de doutorado ou apenas atenderá às pressões do mercado para agilizar a formação de doutores.
O parecer propõe ainda mudanças radicais no sistema de avaliação dos discentes de mestrado e doutorado, de modo que as habilidades e competências também sejam avaliadas e não apenas a capacidade intelectual por meio da produção de dissertações e teses resultantes de pesquisas. Isso confirma a desvalorização da produção cientifica e incentivo à formação para o mercado.
Enfim, o parecer propõe mudanças profundas ao SNPG, sobretudo em relação à finalidade dos programas, ao padrão de financiamento, à estrutura dos cursos e à avaliação individual dos discentes e do programa, que mudarão o perfil e a finalidade dos programas e a regulação dos mesmos. É preciso ficar alerta à tramitação do parecer, para evitar a incorporação de suas recomendações ao desenho atual do SNPG, o que favorecerá os capitais, em detrimento da classe trabalhadora e tornará mais precárias as condições de produção científica no país.
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* Maria Lucia Lopes da Silva é Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da UnB, filiada à AdUnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
[1] PNPG 2024 - 2028 | Versão preliminar. P. 9
Edição: Flávia Quirino