O fechamento do Hospital São Vicente de Paulo (HSPV) foi novamente lembrado durante um ato-homenagem à Raquel Franca de Andrade, de 24 anos, realizado neste sábado (11) em frente a unidade, em Taguatinga (DF). A reivindicação ganhou força após a jovem ser encontrada morta no Hospital na noite de Natal de 2024. Raquel era paciente psiquiátrica e estava em internação permanente na unidade hospitalar desde 2023.
A manifestação, articulada pelo Fórum Antimanicomial do DF e Grupo Saúde Mental e Militância do DF, contou com a presença de ativistas, profissionais da saúde pública do DF e da deputada federal Érika Kokay (PT). No final do ato, um altar foi feito em homenagem e memória de Raquel.
Durante fala, a parlamentar lembrou que Brasília é um dos últimos lugares em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em todo o país. "Só agora estão sendo disponibilizadas cerca de 20 vagas em residências terapêuticas. Só agora, mesmo com a reforma psiquiátrica datando de 2001, prestes a completar 24 anos”, afirmou a deputada.
“As pessoas precisam estar em residências terapêuticas, sendo cuidadas em liberdade, porque sem liberdade não se cuida, apenas se controla. O Brasil carrega muitas histórias de holocaustos em manicômios, como o hospital de Barbacena, que assassinou cerca de 70 mil pessoas”, declarou Erika.
Também presente no ato, Pedro Costa, professor da UnB e membro do Grupo Saúde Mental, destacou que Raquel é a expressão do que representa um manicômio na sociedade. “Ela foi uma mulher violentada durante toda a sua vida e passou boa parte dela institucionalizada."
"Raquel estava aqui no São Vicente de Paulo, internada de forma ininterrupta há quase dois anos, além de já ter sido internada anteriormente, tanto nesse local quanto em outros, por vários meses e anos. Para nós, Raquel é, de fato, a expressão de que o manicômio mata”, afirmou o professor.
Um dos residentes do Hospital, que preferiu se manter em anonimato, destaca que a morte da Raquel “abala, mas não surpreende”. “Essa não foi a primeira morte, e se esse lugar continuar aberto, não vai ser a última. Acho importante deixar bem claro que as pessoas que estão aqui dentro são pessoas que deveriam ter seu cuidado em liberdade. Temos uma rede [de Saúde] fragilizada”, afirma.
Ele também destaca que a luta é pelo fechamento do hospital que opera em contexto manicomial, e não contra os funcionários. “Durante todo o tempo que passei aqui, me esforcei para não desaprender o que havia aprendido. É muito fácil trabalhar nesse ambiente, permanecer nele, adoecer e acabar normalizando todas essas violências.”
“Por isso, quando dizemos que somos contra o manicômio, não estamos nos referindo às pessoas que trabalham aqui. Falo isso como alguém que já esteve nesse lugar e entendo o quão adoecedor é, além de como o discurso manicomial se infiltra e se impregna em nossa mente”, afirmou.
Funcionamento ilegal
O Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) foi inaugurado como instituição psiquiátrica em 18 de maio de 1976. Mais de 48 anos depois, apesar da política de desinstitucionalização instituída pela Reforma Psiquiátrica, instituída oficialmente pela lei 10.216 de 2001. O Hospital segue funcionando com internações prolongadas e violações. Por isso, organizações de saúde mental classificam a instituição como um “manicômio público e ilegal”.
O documento mais recente do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), apresentado durante uma audiência na Câmara dos Deputados em agosto de 2024, destaca que os pacientes do HSVP são submetidos a uma série de violações, como o impedimento de acesso à mídia e aos meios de comunicação, internações prolongadas e o uso abusivo de contenções mecânicas como prática disciplinar, método também foi utilizado em Raquel Franca de Andrade
Também presente no ato, Samantha Larroyed, ativista antimanicomial, conta que já fez passagem pelo São Vicente de Paulo como paciente. Ela lembra que, durante o tempo de internação, as agressões verbais eram constantes, além de destacar o uso da contenção mecânica.
“Uma médica plantonista, na época, chegou a apertar meu colo com o dedo com muita força. Eu estava catatônica e sem reação, em um estado psicótico muito intenso e grave. Então, eu estava babando, catatônica e ela me apertou com muita força, gritou comigo para ver se eu acordava. Foi uma situação muito ruim, eu comecei a chorar. E essa é uma prática que não é isolada”, lembra Samantha.
Samantha ainda destaca que o ato e a morte de Raquel denunciaram a negligência do Estado e o descaso da sociedade para com pessoas em contexto manicomial. “O Estado reflete esses casos da sociedade em relação a essas pessoas, como a Raquel, que era uma mulher negra e periférica. Ela já estava no contexto de abandono familiar. Então, é um abandono total e generalizado”, diz.
Outra norma contraria a continuidade do funcionamento do HSVP é a lei distrital nº 975/95. Promulgado em 1995, o texto previa a “redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados”, que deveriam ser extintos em um prazo de quatro anos, ou seja, até 1999. Há um atraso de mais de 24 anos no cumprimento da norma.
Pedro também lembra do investimento público realizado no Hospital. “Todo mês o GDF despendia cerca de R$ 6 milhões para custear o São Vicente de Paulo. Com um cálculo rápido, podemos pensar no número de CAPS, residências terapêuticas ou leitos em hospitais gerais que poderiam ser viabilizados com esse valor."
“Assim, ao invés de suprir uma lacuna, a permanência e manutenção do Hospital Psiquiátrico representam um dos principais obstáculos para construirmos uma rede de atenção psicossocial forte e eficaz. Por isso, o fechamento do São Vicente de Paulo, vinculado a um plano de fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e de seus dispositivos, é fundamental”, afirmou Pedro.
Durante a ação deste sábado, a enfermeira e conselheira do Conselho de Saúde do DF, Karina Rodrigues, lembrou da importância de ocupar espaços de representação do conselho para colocar a debate sobre saúde mental e pauta. “Dentro do conselho do DF, de todas as representações, sendo mais 60 pessoas, eu tenho claro que hoje apenas três ou quatro pessoas são antimanicômio”, afirma.
“A gente precisa ocupar esses espaços, se articular e aglutinar, porque, de 2025, não pode passar. Não pode passar, justamente, porque o caso da Raquel mostra que existem outras mulheres, homens e adolescentes, que passam por aqui e que vão ser vítimas e a gente não pode mais tolerar isso”, argumenta Karina.
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Edição: Márcia Silva