O bloco imperialista, comandado pelos Estados Unidos, está em lenta e aberta decadência
Se fosse um filme, poderíamos acusar o roteirista de uma terrível falta de sutileza e criatividade. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, propôs nesta semana que o país tome o controle da Faixa de Gaza, expulsando seus moradores e transformando a região numa área turística de luxo. Ao seu lado, o premiê isralense, Benjamin Netanyahu, mal disfarça o sorriso e a surpresa.
Poucas horas depois, a Casa Branca desconversou e analistas se tranquilizaram, considerando tratar-se de mais uma bravata entre tantas ditas por Trump desde que tomou posse em 20 de janeiro. Na verdade, caem os disfarces e se revelam nitidamente as intenções criminosas de limpeza étnica e deslocamento forçado.
Uma ação que Israel e EUA, juntos, intensificaram a partir de outubro de 2023, diante da cumplicidade e impotência do resto do mundo. Um genocídio que já deixou mais de 46 mil mortos, 70% mulheres e crianças. Centenas de milhares de pessoas passaram a viver sob tendas, sem acesso a água e comida, e agora, com um frágil cessar-fogo, começam a retornar a suas casas reduzidas a escombros.
2024 foi o ano em que Israel acelerou o genocídio sobre os palestinos na Faixa de Gaza e também foi o ano mais quente da história, superando o limite almejado no acordo de Paris, de elevação de até 1,5º C na temperatura média da Terra com relação ao período pré-industrial. Os efeitos já se mostram devastadores. Só para ficar no Brasil: tivemos a maior seca da história na Amazônia e a maior enchente da história no Rio Grande do Sul. A seca ajudou a alastrar incêndios provocados e as queimadas destruíram uma área do tamanho da Itália no território brasileiro. E, para quem esperava que a chegada da La Niña representasse uma trégua nos sucessivos recordes de temperaturas mensais, 2025 já trouxe frustração e desespero: seu primeiro mês foi o janeiro mais quente da história.
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Além de sofrerem da falta de ação da “comunidade internacional”, a questão climática e a questão palestina estão profundamente relacionadas, como lembra Andreas Malm em seu livro A destruição da Palestina é a destruição do planeta. O fio que liga as duas é a própria história da expansão do capitalismo em sua fase imperialista e a disputa por territórios de base natural vantajosa, especialmente o petróleo.
“A partir de 1917, a ocupação britânica da Palestina fez parte da transformação do Oriente Médio em uma base para o capital fóssil, em virtude de seus recursos petrolíferos. A partir de 1947, o apoio ocidental ao novo Estado sionista foi informado pela consumação dessa ordem; e, a partir de 1967, pela sua defesa. Os passos no caminho para a destruição da Palestina foram simultaneamente passos no caminho para a destruição do planeta”, escreve Malm. Aliás, não custa lembrar que a costa de Gaza, da qual Trump quer tomar conta, contém bilhões de dólares em reservas de gás natural.
Não que Biden e os democratas fossem radicalmente diferentes, mas os métodos agora são bem menos sutis. Estamos adentrando terreno desconhecido no clima e na política internacional. O fascista Trump retorna a seu segundo mandato coroado pelo voto popular, mais radical, com mais força no Congresso e apoio explícito dos bilionários do Vale do Silício. Ele governa a principal potência do mundo com e para os 1% mais ricos, aqueles que já gastaram sua “cota de carbono” anual nos primeiros dez dias de 2025.
O mesmo Trump que decreta a “solução final” para Gaza abraça o negacionismo climático de conveniência e guina a política energética dos EUA para a prioridade fóssil, o que equivale a decretar a morte do objetivo global de até 1,5ºC de aquecimento. Os EUA são o país que mais emitiu gases de efeito estufa ao longo da história. Em 2008 foi ultrapassado pela China em volume anual, mas ainda ganha na conta per capita. Já perde, no entanto, em dinamismo econômico e se vê ameaçado na corrida tecnológica pelos rivais socialistas de mercado.
O bloco imperialista, comandado pelos Estados Unidos, está em lenta e aberta decadência e, por isso mesmo, se torna mais agressivo.
Da Palestina à Amazônia, a luta dos povos da terra
Se a questão climática e a questão palestina estão no centro dos ataques do imperialismo, nossas organizações também devem compreender que são questões relacionadas. Para ser justa, uma parte já entendeu. Uma das mais famosas ativistas climáticas, Greta Thunberg, passou a defender cada vez mais a causa palestina. Como bem lembrou a ativista Tori Tsui em entrevista à jornalista Myriam François, fazer a conexão lógica entre essas lutas teve um preço: quando Greta começou a ligar a crise climática ao capitalismo, ao colonialismo, ao genocídio e outras formas de opressão no Sul Global, ela “desapareceu” da mídia mainstream.
Conforme os extremos climáticos se tornam mais frequentes, ficam evidentes os limites do capitalismo neoliberal em oferecer saídas sólidas sem perturbar seu objetivo central: o lucro.
Reconstruir o Rio Grande do Sul após as enchentes custa mais de R$ 200 bilhões segundo o governo daquele estado. Realocar os 45 mil moradores do Jardim Pantanal, que estão ilhados há uma semana pelas enchentes na Zona Leste de São Paulo, custaria R$ 2 bilhões, segundo a Agência Pública. Nossas cidades, profundamente desiguais, não estão nem um pouco adaptadas para a crise climática e quem mais sofre, evidentemente, são as parcelas mais pobres da classe trabalhadora, especialmente pessoas negras. Enquanto isso, nossos governantes ficam desnorteados, acorrentados a uma ideologia privatista e fiscalista, fingindo não saber que um Estado mínimo é incapaz de proteger a população do desastre.
É contra esse tipo de visão neoliberal do Estado que aqueles que mais tem feito para proteger o clima se levantaram recentemente.
Há mais de 25 dias, povos indígenas do Pará ocupam a Secretaria Estadual de Educação em Belém (PA), cidade que receberá em novembro o espaço internacional mais importante de discussão sobre o clima, a COP 30. Eles lutam contra uma lei que ataca o direito à educação nas aldeias e comunidades ribeirinhas e favorece o ensino à distância. Unindo-se aos professores em greve, trancando rodovias e resistindo a ameaças e a cooptação, conseguiram dobrar o governador Helder Barbalho, que assinou no dia 5 de fevereiro um termo de compromisso para revogar a lei em questão.
“A COP já começou”, sentenciou Ailton Krenak. E será em luta, completariam os movimentos populares.
Tanto indígenas quanto palestinos estão aí nos lembrando que a experiência do fim do mundo, que para nós pode ser bem atual, para eles começou há muito tempo.
Ao menos desde 1948 na Palestina, com a Nakba e o projeto sionista, e desde 1500 nas chamadas Américas, com a invasão colonial. “Uma terra sem povo para um povo sem terra” foi o lema para justificar a criação do estado de Israel. Coincidentemente, ou não, a frase “terras sem homens para homens sem terra” foi usada na ditadura militar para justificar a transferência de milhares de colonos para as margens das rodovias que rasgaram a Floresta Amazônica. Mais de 750 mil palestinos foram expulsos pelos sionistas. Ao menos 8 mil indígenas foram mortos pela ditadura, diz a Comissão Nacional da Verdade, em um levantamento provavelmente subestimado.
E quanta semelhança entre a “Riviera do Oriente Médio” que Trump quer construir sobre o sangue de Gaza e os inúmeros processos de gentrificação e expropriação dos territórios dos povos tradicionais no Brasil para a instalação de resorts de luxo.
Seja pela experiência de conhecer o fim do mundo ou pela profunda conexão dos povos com seus territórios, essas lutas são hoje talvez os principais focos de resistência à barbárie do ocidente.
É isso que penso quando vejo o vídeo de uma menina de cinco anos desafiar Trump em uma rede social cujo dono está envolvido com o projeto fascista. A menina, identificada como Maria Hannoun, questiona: “vocês não deveriam ser o país da liberdade? De que liberdade estão falando quando querem nos restringir em nossa própria terra?”. E termina assim: “Você pode controlar o mundo inteiro, exceto Gaza, porque Gaza é o mundo”.
Gaza é o mundo, como a Amazônia é o mundo. Tudo está conectado e assim precisa ser nossa luta nesses tempos sombrios.
*Elisa Estronioli é jornalista e integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino